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Nómadas ao seu serviço

26 Março 2015

23-03-2015| VISÃO

Com carrinhas adaptadas às suas profissões, percorrem várias aldeias portuguesas, em busca de clientes. Para as populações envelhecidas do Interior, a chegada destes serviços sobre rodas é sempre um acontecimento.

Adorinda Bernardo – quer fazer ‘brushings’ ?às transmontanas

Há uma cabeleireira em Miranda do Douro que sabe muito bem o transtorno que é ter a carrinha avariada. Nos últimos três meses, parou durante 15 dias, com o gerador e a bomba de água estragados. Um infortúnio a juntar à recém-diagnosticada artrite reumatoide e a uma luxação na cervical que a obriga a descansar mais. Ainda assim, faz-se à estrada três vezes por semana.

Em Picote, a 16 km de Miranda do Douro, onde as amendoeiras já estão em flor e o rio serpenteia a paisagem, a tarde fria não afasta um grupo de senhoras que, pela primeira vez, vão experimentar o corte de Adorinda. Apesar dos preços acessíveis, entre os sete e os nove euros, gastar dinheiro num “brushing” não é habitual nestas aldeias.

A cliente mais nova da tarde, Idalina Louçano, 57 anos, trabalha como auxiliar no lar, onde fez o turno que terminou às oito da manhã. No salão ambulante encontra a sua vizinha Glória Moreira, 69 anos, e enquanto esperam, no sofá que as recebe à entrada da carrinha, põem a conversa em dia.

O vento está a soprar de feição, por isso é preciso reforçar a dose de laca. Com os homens, Adorinda não precisa destes retoques finais. Antes de ir cortar o cabelo a duas pessoas acamadas, reserva tempo para atender o senhor Miguel, um dos maiores produtores de nozes da região, que aos 90 anos está a receber formação à noite sobre produtos fitofarmacêuticos para saber comprá-los e aplicá-los nas suas vinhas – requisito obrigatório a partir do próximo outono.

As nove clientes foram todas cortar o cabelo; para já, continuam a lavar e secar em casa, e até a pintar os brancos. Com o tempo, pode ser que comecem a querer explorar outros serviços da carrinha de Adorinda, que está preparada para fazer qualquer trabalho técnico, como colorações, ondulações, madeixas, além de tirar o buço e as sobrancelhas com cera. No futuro, a cabeleireira sonha ter serviço de manicure e gabinete de estética.

A carrinha preta está estacionada mesmo ao lado da Igreja de São João Batista, que a antiga professora primária Fátima Lourenço, 72 anos, cruzava de marcha atrás quando já ia atrasada para a escola. E se antes costumava ir ao cabeleireiro em Sendim, agora “a disponibilidade de Adorinda é uma grande mais-valia”. Foi também nesta rua que Adília Preto, 73 anos, estranhou quando um dia, em janeiro, a cabeleireira andava para a frente e para trás com a carrinha, em repetitivos trajetos curtos, acompanhada de forasteiros. Percebeu tudo ao ver uma campanha publicitária da marca sueca Ikea, que transformou a transmontana de 37 anos numa estrela de televisão, promovendo as suas casas de banho.

Aquele largo da igreja tem sido central na vida de Adorinda. Aos 18 anos, quando conheceu o marido, na festa no primeiro fim de semana de agosto, não imaginava que haveria de estacionar o seu cabeleireiro junto à igreja, onde, no final da missa de domingo, Gonçalo Santos, presidente da Junta de Freguesia de Picote, faz o “conselho da aldeia”, e discute com os 200 habitantes as decisões dessa semana.

Na bagagem, Adorinda guarda, além de muita genica, a experiência de ter vivido em Madrid. Aos 15 anos, emigrou com quatro irmãos e foi, durante 11 anos, cozinheira na casa particular de Leopoldo Calvo-Sotelo y Bustelo, ex-presidente do governo espanhol entre 1981 e 1982. Foi também na capital vizinha que tirou o curso de ?cabeleireira, para concretizar “um sonho de pequena”.

Regressou a Portugal há 12 anos e montou um salão no centro de Miranda do Douro. Porém, um aborrecimento com o senhorio ditaria o fim do negócio. Determinada, lembrou-se de criar um cabeleireiro ambulante e só ficou um mês em casa até comprar a carrinha em segunda-mão e entregá-la a uma autotransformadora, que a modificou por dentro e a legalizou: “Um investimento de cerca de 50 mil euros.” Agora anda numa roda-viva para fidelizar as clientes e conseguir ir, pelo menos uma vez por mês, a cada uma das trinta freguesias dos concelhos de Miranda do Douro e de Mogadouro.